FAMÍLIA DE CRIANÇA AUTISTA RECLAMA DE TRATAMENTO EM VOO DA AZUL
Otávio é uma criança sorridente que adora andar de avião. Fica sempre
eufórico ao entrar na aeronave e já voou muitas vezes com os pais. Mas
ele não suporta, por enquanto, usar o cinto de segurança no avião desde o
início, antes da decolagem. O garoto, de 10 anos, é autista.
A última viagem, no sábado, não foi como as outras. No voo da Azul
que ia de Navegantes (SC) para Porto Alegre, a tripulação se recusou a
dar início ao taxiamento enquanto ele não estivesse sentado e com o
cinto afivelado.
Os pais tentaram negociar, já haviam voado com a Azul outras três
vezes, e sabiam que o menino colocaria o cinto no momento da decolagem e
do pouso, porque estava condicionado a isso. O tempo de viagem,
previsto para 50 minutos, aumentou para quase duas horas, depois de
muito estresse, ameaças e bate-boca entre a família do garoto e a
tripulação, que acabou aceitando o compromisso do pai de que o cinto
seria usado quando o avião estivesse subindo.
— Seria tranquilo. Ele colocou o cinto na hora, passou o voo pulando,
brincando, rindo. Foi desnecessário e fica como um exemplo negativo de
que uma pessoa portadora de necessidades é um estorvo na sociedade. Ele é
alegre, mas meu marido disse que num momento, quando estava sentadinho,
as lágrimas escorriam — diz a mãe de Otávio, a nutricionista Silvia
Sperling Canabarro.
O uso do cinto de segurança está sendo trabalhado com Otávio há dois
anos. Para Douglas Norte, responsável pelo acompanhamento terapêutico do
garoto, o incidente pode ter prejudicado o desenvolvimento dele nessa
atividade.
— A comissária chegou e começou a obrigar. Isso pode ter se tornado
punitivo ao invés de um reforço. Provavelmente, a gente pode ter dado um
passo atrás na terapia dele. Pode estar instaurado nele um
comportamento à força.
Para o comandante Paulo Roberto Alonso, consultor técnico da
Diretoria de Segurança e Operações de Voo da Associação Brasileira das
Empresas Aéreas (Abear), a colocação do cinto é obrigatória no
taxiamento, e não existe meio-termo. Ele afirma que a maioria dos
incidentes ocorre nessa fase — o avião pode dar uma parada brusca se
houver a entrada inadvertida de uma viatura ou um animal na pista.
— Esse assunto não é dúbio. É sim ou sim. Essa exigência é justamente
para não colocar em risco a pessoa, independente de quem seja, nem os
demais passageiros. A gente não tem como abrir mão. Não tem muito o que
discutir — afirma Alonso.
Em nota, a Azul informou que segue os padrões de segurança exigidos
pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e que a ocorrência será
apurada pela companhia. "A Azul Linhas Aéreas Brasileiras informa que
tem profundo respeito pelas normas de segurança e, por isso, cumpre com
as exigências estabelecidas pela Anac. A Azul lamenta os transtornos
causados à família da senhora Silvia Canabarro e ressalta que o caso
está sendo apurado para que situações como essa sejam evitadas", diz o
texto.
O depoimento da mãe do garoto, a nutricionista Sílvia Sperlin Canabarro
"Otávio, como grande parte dos autistas, não obedece às regras
sociais da maneira esperada pelos demais. Entra no avião eufórico e quer
ficar de pé à frente da poltrona ou sentado no chão.
Conversamos com
ele para que, no momento exato da decolagem e aterrissagem, permaneça um
breve período sentado, com o cinto afivelado. Às vezes, há comissários
de bordo mais compreensíveis e amigáveis, e, outras vezes, alguns mais
rudes e intolerantes, mas nunca houve problemas."
"O comandante reiterou que não decolaria e queria que déssemos a
percentagem de probabilidade de que conseguiríamos que Otávio ficasse
com o cinto na decolagem. O que eu estava ouvindo? Teríamos que dar uma
previsão numérica da chance de seu bom comportamento? Nunca passei por
isso."
"Como já imaginávamos, ele sentou na poltrona no momento da decolagem
e da aterrissagem. Agora posso gritar bem alto minha indignação ao
preconceito, contra o qual tanto se luta todos os dias. Eu, como uma
simples mãe que escreve sua dor, sua vitória, seu lamento e sua
obstinação, vou continuar gritando e dando voz a meu filho e garantindo
seu direito de ser feliz e conviver em sociedade a seu modo."
Resolução da Anac estabelece procedimentos de acessibilidade
Uma norma da Anac publicada em julho deste ano estabelece os
procedimentos de acessibilidade de passageiros. A resolução 280 foi
criada a partir de um debate entre o Conselho Nacional de Pessoas com
Deficiência e a Anac, em virtude de queixas recorrentes de acesso no
transporte aéreo. Entre os dispositivos, está a obrigatoriedade de que
companhias aéreas ofereçam cursos de capacitação para os funcionários
lidarem com pessoas com deficiência, incluindo aquelas que têm
dificuldade de compreender regras. A regra vale a partir de janeiro.
Para a pedagoga Clarissa Alliati Beleza, diretora técnica da Fundação
de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para Pessoas com
Deficiência e com Altas Habilidades no Rio Grande do Sul (Faders), a
preparação dos profissionais é importante para que eles possam perceber o
que é possível ou não fazer, baseado na condição da pessoa com
deficiência. Clarissa afirma que, atualmente, está sendo adotada uma
nova abordagem na discussão acerca do tratamento, com base na Convenção
das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,
ratificada pelo Brasil em 2008.
— Antigamente, havia a concepção de que os problemas da pessoa com
deficiência seriam só relativos à pessoa, então ela teria que se adaptar
aos procedimentos padrões, e não esses procedimentos se adequarem à
pessoa. Mas isso mudou. As dificuldades não estão só na pessoa, mas nas
barreiras do meio e da estrutura da sociedade. Hoje se trabalha o
conceito social da deficiência.
Como lidar com situações semelhantes
Para os pais
- O autista não deve ser tratado como um doente. É uma criança
especial, com déficit no desenvolvimento, mas entende tudo e é capaz de
progredir fazendo terapia.
- Leve a criança para a rua. Sair, caminhar e interagir com as
pessoas são atividades terapêuticas. Ao frequentar supermercados e
restaurantes, pegar ônibus e ir ao estádio torcer para o time, ela
conhecerá o mundo da maneira dela.
Para a comunidade
- Seja mais tolerante. Pessoas com autismo podem não obedecer às
regras sociais da maneira esperada, por isso podem não entender
conceitos como esperar sua vez na fila e usar o cinto de segurança.
- A terapia comportamental aborda os conceitos de reforçar o bom
comportamento, por meio da repetição e da recompensa, e punir o mau. Não
interfira obrigando porque o autista pode associar isso com punição.
- Você tem a capacidade de flexibilizar, o autista não.
Fonte: Douglas Norte, acompanhante terapêutico da Re-Fazendo Assessoria Educacional Especial (www.autismo.com.br)
fonte/ZeroHora
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