RAPAZ DE 25 ANOS MORA HÁ 8 NO AEROPORTO DE CUMBICA

Sua residência é bem movimentada, um vai-e-vem. Tem dois saguões com dezenas de televisões e mesas de refeição. A garagem então é mais ampla: entram centenas de carros e dezenas de aviões. A suíte, entretanto, é bem improvisada: duas mesinhas de fórmica são sua cama, e o banheiro anexo é o sanitário de cavalheiros do terminal 2 de Cumbica, o principal aeroporto do país.
"Aqui sinto que estou em casa. À noite, é tranquilo, ninguém me acorda. De dia, tenho muita amizade, quebro o galho deles. E eles me dão uma caixinha", resume assim Denis de Souza um cotidiano que leva há pelo menos oito anos. Tamanha é a confiança que ele desconta cheques altos e arruma trocado para notas de R$ 100 para os outros trabalhadores do aeroporto. Durante a entrevista para o UOL Notícias, ele corria para fazer a aposta na Mega-Sena do atendente de uma cafeteria.
Ele se adaptou tão bem ao ambiente fechado que não sabe em que dia da semana ou do mês está. Não sabe também ao certo quantos anos tem (acha que fez 25 anos, mas também não lembra a data de seu aniversário e afirma ter perdido os documentos) nem há quantos vive por lá: "Estou aqui há o maior tempo, mais de cinco anos". As lojistas mais veteranas contam que veem Denis por lá há muito mais tempo. O que sabe com certeza é o dia em que o Corinthians joga.
Apesar de não saber ler (abandonou a escola na primeira série), Denis carrega sempre o jornal esportivo do dia embaixo do braço, aberto na página do time do coração. Diz que já viu "uma pá de gente famosa", mas só lembra os nomes dos alvinegros Felipe, Chicão e William: "Minha diversão aqui é ver o Corinthians embarcar e desembarcar."
As partidas ele acompanha nos monitores de lá e, quando junta uns trocados, escapa de seu espaço aéreo e compra um ingresso no Pacaembu (afirma ganhar por volta de R$ 10 por dia). O Corinthians é tão sua única paixão que Denis não arranjou nenhuma namorada por lá.
A história que ele conta é que ainda adolescente pegou um ônibus em Itaquaquecetuba, cidade da Grande São Paulo, e seguindo a rota da rodovia Ayrton Senna foi parar no aeroporto da vizinha Guarulhos. A madrasta batia nele.
O pai o teria enxotado de casa após a primeira estadia em Cumbica. "Meu pai falou para eu ficar no aeroporto, afinal, aqui eu conheço todo mundo, tenho amizade. Lá é muito feio. Prefiro aqui, me sinto seguro", se resigna o rapaz, de comportamento bastante infantil.
Para permanecer no aeroporto segue duas regras: não pedir esmolas e não incomodar os passageiros. Ou nas palavras de Denis: "tem que ficar de boa." Por perto dele, três meninos da vizinhança pobre de Guarulhos ensaiam uma algazarra e são "convidados" a sair por um segurança. Pela posição da polícia e da Infraero (administradora dos aeroportos), o local é público e ninguém que não ofereça algum perigo aos frequentadores pode ser expulso. Vez ou outra, é expulso por um segurança. Mas logo retorna. Outras vezes sai para fazer bico nos bairros próximos, mas à noite lá está ele de volta.
Ele improvisa sua toalete nas grandes toaletes azulejadas de lá, mas quando precisa de um banho completo recorre à casa de um amigo vizinho ao aeroporto. A alimentação também é cortesia dos balconistas e lojistas, que trazem marmitas para ele ou cobram mais barato as refeições, cobradas a preços inflacionados pelo ambiente cosmopolita.
Também coadjuvantes no aeroporto, os empregados de lá são os que possibilitam a estadia de Denis, enquanto os protagonistas passam por lá apenas para pegar aviões e táxis. O habitante de Cumbica dorme bem ao lado de uma perfumaria. Bruna Ituaçu, uma balconista de lá, levou Denis nos últimos dois Natais para a casa de sua sogra. "No começo, ele gostou, principalmente dormir em um colchão. Depois pediu para voltar para o aeroporto", conta Bruna.
A relação com a perfumaria também tem seus conflitos. Outra funcionária acabou advertida porque Denis contou para o dono da loja que ela atrasava para abrir o comércio - o telefone de lá não parava de tocar de manhã e acabavam por acordá-lo (ele dorme das 2h da madrugada, quando o recinto se acalma, até as 10h da manhã).
O noticiário sobre habitantes de aeroporto ficou recorrente nos últimos tempos, com o relato de um turista japonês instalado no aeroporto da Cidade do México e de uma deportada da Espanha que ficou no aeroporto de Salvador mais de duas semanas porque não conseguia dinheiro para voltar para Tocantins.
É o conhecido jogo da vida que imita a arte que imita a vida. Em 2004, o diretor Steven Spielberg lançou o filme "O Terminal", que contava a história de um viajante do Leste Europeu (da ficcional república da Cracósia) se vê ilhado entre a alfândega e a porta de desembarque. A obra de Spielberg, por sua vez, é inspirada num caso real, de um iraniano que passou anos vivendo no aeroporto Charles De Gaulle, de Paris.
O personagem interpretado por Tom Hanks não tem o passaporte reconhecido por problemas políticos em seu país e acaba se instalando no aeroporto com direito a arrumar emprego em loja, romance com uma aeromoça e amizade com os funcionários. No enredo, o náufrago aéreo vira uma espécie de Robinson Crusoé, criando até um restaurante e uma fonte nos corredores do lugar para conquistar a mocinha feita por Catherine Zeta-Jones.
Já a versão brasileira é mais um exemplo da economia informal e da cultura do favor que marcam o país, com Denis aproveitando uma brecha do aeroporto para levar uma vida, no mínimo, incomum.
Fonte: Rodrigo Bertolotto (UOL Notícias)

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