NA GUERRA DAS MALVINAS, UM FLERTE COM A MORTE SOBRE O ATLÂNTICO SUL



O Porta Aviões Invincible, da Marinha Real Britânica, participou da Guerra das Malvinas
Foto: Agência O Globo

O Porta Aviões Invincible, da Marinha Real Britânica, participou da Guerra das Malvinas Agência O Globo
RIO - Aconteceu na tarde de sexta-feira, 23 de abril de 1982. Quem estava sentado do lado esquerdo do avião levou um grande susto: apareceu um jato militar, bem armado e com pintura de camuflagem, junto da asa do DC-10 da Varig. Foi por pouco tempo — o suficiente para provocar tumulto. De repente, o caça deu uma guinada e desapareceu. Deixou perplexidade bastante para animar a conversa a bordo naquele fim de viagem Johanesburgo-Rio.
Ao desembarcar no aeroporto do Galeão, por volta das 19h30m, cada passageiro tinha uma breve história para contar. Um deles era Leonel Brizola, então candidato ao governo do Estado do Rio. "Dava para ver o perfil do piloto", ele disse ao GLOBO na época. Brizola (1922-2004) e seus companheiros de viagem não podiam imaginar, mas aquilo fora um flerte com a morte.

Quando o DC-10 foi captado na tela dos radares, a frota britânica navegava a dois mil quilômetros de distância das praias do Rio. Avançava na direção do arquipélago Malvinas, invadido por tropas argentinas três semanas antes.

O almirante John Forster "Sandy" Woodward comandava uma operação arriscada, a 13 mil quilômetros das bases europeias, limitada no calendário pelo início do inverno polar. E, também, limitada no tempo, porque o governo da primeira-ministra Margareth Thatcher não sobreviveria se a missão resultasse em fiasco ou numa "viagem inútil a lugar nenhum" — na definição do Bureau de Inteligência do Departamento de Estado norte-americano.

Há quatro dias a esquadra deixara a base da ilha de Ascensão, na altura de Pernambuco, e era frequentemente sobrevoada por um Boeing 707 da Aerolíneas Argentinas. Toda a estratégia de defesa da Junta Militar dependia da localização dos navios para estimativas sobre a data mais provável de chegada da frota à zona de combate.

Incomodado com as missões de "reconhecimento", Woodward pediu mudanças nas regras de interceptação. Até então, dependia de autorização expressa de Londres para abrir fogo contra aeronaves consideradas como "ameaça", fora da "zona de exclusão aérea", mesmo que estivessem desarmadas. Recebeu autonomia na quinta-feira 22 de abril, quando o secretário de Defesa, John Nott, anunciou alterações no sistema de "alerta de defesa" da frota — sob o argumento de que a esquadra já se encontrava ao alcance das Força Aérea argentina.

Na manhã de sexta-feira, 23, um Boeing 707 da Aerolíneas despontou nos radares, e desapareceu — indicam os registros coletados pelo historiador militar britânico Rupert Allason, cujos livros são assinados com o pseudônimo Nigel West.

À tarde, outro alarme: aeronave suspeita a 340 quilômetros de distância, dez mil metros de altitude, em aproximação a 700 quilômetros por hora. O momento não poderia ser pior, descreveu Woodward nas memórias, porque o porta-aviões Hermes estava em meio ao reabastecimento. Preparou-se o lançamento de mísseis.

Um caça Harrier se aproximou do "alvo". Chegou por trás; passou por cima; ficou à frente; foi para o lado esquerdo; deu uma guinada e sumiu, sem responder às tentativas de contato do comandante do DC-10, Manoel Mendes — segundo ele mesmo relatou aos passageiros curiosos, como Leonel Brizola e o então deputado maranhense Neiva Moreira.

O piloto do caça confirmara o "alvo" como jato comercial regular da companhia brasileira Varig, em voo de rotina e com as luzes de cabine devidamente acesas. Woodward calcula em 30 segundos e Allason (West) estima em 20 segundos o intervalo entre o reconhecimento pelo Harrier e a ordem para abortar o ataque. A bordo do DC-10 da Varig, 188 pessoas não sabiam, mas durante essa fração de tempo flertaram com a morte. E o comandante Woodward escapou de um erro que, certamente, teria mudado a história da guerra no Atlântico Sul.

Longe dali, no aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires, desembarcavam os últimos oficiais argentinos vindos da América Central. Desde 1980 a Argentina estava engajada no plano de ação militar do governo Ronald Reagan contra a "ameaça comunista" no eixo El Salvador, Honduras e Nicarágua.

Quando o arquipélago Malvinas foi invadido, no 2 de abril, o governo do general Leopoldo Galtieri sustentava 180 agentes militares e civis em operações encobertas contra guerrilhas centro-americanas. A participação argentina havia sido negociada pelo coronel Vernon Walters, ex-diretor da CIA, e era coordenada pelo embaixador John Negroponte, em Honduras, com assistência do coronel Oliver North, em Washington.

Sob o manto da Guerra Fria, Reagan fizera uma aliança com a ditadura militar argentina, ferozmente anticomunista. Ganhou uma força antiguerrilha auxiliar — imune às leis dos EUA —, para compor unidades como o "Batalhão 316", um esquadrão da morte, com histórico de assasinatos, tráfico de armamentos e de drogas (para financiar a compra de armas). Os agentes argentinos participaram ativamente.

Essa era uma das razões pelas quais a Junta Militar argentina julgava-se "aliada estratégica" dos EUA. E apostou no apoio norte-americano para "neutralizar" a reação da Grã-Bretanha à invasão das Malvinas no 2 de abril de 1982.

Cinco meses antes, o general Galtieri até tentou aprofundar essa aliança. Em novembro de 1981 foi a uma reunião de chefes de exércitos do continente, em Washington, onde apresentou a proposta de uma força "interamericana" para ampliar a intervenção militar na América Central. O governo Reagan saudou, mas Brasília despejou uma lápide em cima dessa ideia (em papéis internos, o Itamaraty passou a defini-la como "divergência não publicitada" nas relações com a Argentina).

Na esteira da crise pós-invasão militar das Malvinas, os EUA recordaram que sua prioridade e compromisso era a aliança militar com o Reino Unido. A Junta Militar argentina reagiu e retirou seus agentes da América Central.

Em Brasília, essa decisão foi interpretada pelo Conselho de Segurança Nacional como evidência de uma crise entre Buenos Aires e Washington, cujo resultado seria uma valorização "do peso específico da posição brasileira no continente".

Numa das análises enviadas ao presidente da República, general João Figueiredo, em abril, o CSN considerou que ao governo Galtieri só restava uma alternativa: "Procurar uma aproximação maior com o Brasil em todos os planos". E, para o governo Reagan — acrescentou —, "se antes a posição brasileira já era considerada fundamental (na América Latina), agora a impossibilidade de garantir o apoio argentino a tornará imprescindível".

Estava em curso uma diplomacia "de resultados" —- como definiu o chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro, com peculiar ironia.

fonte/OGlobo/foto/OGlobo
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