BOEING 737 - 50 AN0S A DESPERTAR PAIXÕES
Ninguém se pode gabar de ser “passageiro frequente” sem ter
alguma vez voado num Boeing 737. Na verdade, ninguém saberá
verdadeiramente o que significa o “século da aviação comercial” sem
conhecer esta aeronave. Transporta, ainda hoje, milhões de passageiros,
representa a democratização do voo a jacto e é profundamente amado por
pilotos, em especial por aqueles que passaram a comandar aparelhos da
era do “fly by wire”. O Boeing 737 está a comemorar 50 anos de vida. E
parece que está só a começar.
Coloquemos tudo isto em perspectiva: em 9 de Abril de 1967,
dia do primeiro voo do Boeing 737, a aviação estava apenas ao alcance
das elites mais abonadas. Confesso que tenho pena de não ter vivido essa
era, em que viajar de avião era sinônimo de glamour, um casual chic
aconchegado por refeições decentes e bar aberto. Em que o passageiro
era um cliente e não um incómodo. E, pois claro, em que havia mais
espaço entre os assentos do que hoje há nos corredores.
É certo que na altura em que o “37”, como é chamado na gíria
dos pilotos, começou a ser construído pela primeira vez, já não se
vivia tão intensamente o deslumbre da “jet age” que nos final dos anos
50 fez do mundo uma pequena aldeia e cunhou termos tão exóticos como
“jet lag”. Também é verdade que já fazia mais de 10 anos que Frank
Sinatra tinha prometido levar-nos de Bombaim ao Perú em “Come Fly With
Me” (a única canção que consegue dizer a palavra “rarefied” e sair-se
bem com isso). E até Frank Abgnale Jr. já tinha deixado os cockpits da
Pan Am e as aventuras que haveriam de lhe sair caras daí a pouco tempo,
muito por conta de uma hospedeira francesa que o topou em Montpellier.
Sim, os Boeing 707 e 727 eram já uma visão comum nos aeroportos de todo o
mundo. Mas tudo isto, mesmo que já evidenciasse uma certa
generalização, só era verdadeiramente rotina para um grupo relativamente
restrito de afortunados viajantes.
A genialidade do 737, a sua enorme magia, reside
precisamente aqui: a forma como conseguiu ler perfeitamente o seu tempo e
aparecer como uma proposta vanguardista para a época. O tal lado
exclusivo do transporte aéreo ainda era uma realidade, mas a Boeing
arriscou na antecipação de tendências que só hoje nos parecem
inevitáveis, como por exemplo a massificação.
“ninguém saberá verdadeiramente o que significa o ‘século da aviação comercial’ sem conhecer” o Boeing 737″.
Para isso, era necessário um avião mais pequeno, mais
versátil e mais eficiente que os 707 e 727 nos percursos de curta e
média distância, ou seja, uma solução que se ajustasse ao modelo “high
frequency/low density” – mais voos com menos passageiros. Porque, como
se sabe, cada lugar vazio significa perda de dinheiro. Era necessário –
ou adivinhava-se que isso iria acontecer – uma aeronave com capacidade
em torno dos 100 lugares, capaz de operar a partir de aeroportos mais
pequenos e que permitisse rotações (tempo entre um voo e o seguinte)
mais rápidas. E não deixa de ser curioso como aquilo que acabo de
escrever se encontra ainda hoje tão presente nos discursos de eficiência
no transporte aéreo, incluindo os modelos low-cost…
A fórmula encontrada foi aquela que, meio século depois,
perdura como o grande paradigma do curto e médio curso: dois motores sob
as asas, libertando constrangimentos estruturais da fuselagem e
permitindo, assim, torná-la mais larga para acolher filas de seis
assentos. Afinal, o modelo de single aisle que domina este segmento de mercado até à atualidade.
A Lufthansa, ontem como hoje uma das melhores companhias do
mundo, foi a primeira a acreditar no projeto, recebendo em Dezembro de
1967 o primeiro 737 da história, um 737-100, o mais pequeno de todos os
que foram produzidos, com capacidade para 115 passageiros. O arranque
acabaria por ser tímido e a grande descolagem só aconteceu
verdadeiramente com as versões -200, maiores, mais potentes e com
inúmeras melhorias aerodinâmicas. Esta variante viria a tornar-se a
espinha dorsal de muitas companhias aéreas em todo o mundo, incluindo a
TAP. Nos anos 70 e 80, os Boeing 737, nas suas múltiplas modernizações,
detinham a hegemonia dos céus na sua categoria e só os DC-9/MD-80 lhes
faziam uma concorrência tímida. Foi preciso esperar até 1987, ou seja,
exatos 30 anos, para surgir um competidor à altura: o Airbus A320. E
isto diz muito da tal genialidade do 737.
Os números são arrasadores: até ao final de Março, a Boeing
já tinha produzido 9448 unidades, com as encomendas para futuras
entregas a superarem as 4500. Com a chegada da nova geração, denominada
“Max”, o fabricante norte-americano anunciou mesmo o aumento da
capacidade da unidade de Renton de 47 para 52 aviões por mês. De acordo
com as estimativas que cruzei junto de várias fontes, a todo o momento
existem perto de 1500 Boeing 737 a voar nos céus.
Visto assim à distância, tudo isto parece muito certo. Óbvio, mesmo. So what? A
verdade é que há 50 anos nem mesmo em Seattle, a cidade-berço dos
Boeing, havia certezas quanto a esta evolução. Basta ler o que diz Brian
Wygle, o veterano piloto, hoje com 92 anos, que comandou o first flight do 737, em Abril de 1967: “Há 50 anos, a nossa melhor expectativa era vender o suficiente para atingirmos o breakeven”.
Em declarações a um jornal de Seattle, Wygle reconhece que “o Boeing
737 tomou o mundo da aviação de surpresa e tem sido melhorado
consistentemente desde então. Claramente veio preencher uma enorme
necessidade”.
O que diz o piloto…
Mas o Boeing 737 tem ainda outra particularidade: é o que se
pode chamar um avião “de pilotaços”. Qualquer interessado na aviação,
como é o meu caso, já leu inúmeros relatos de recordam a agilidade,
previsibilidade, eficácia e, acima de tudo, o prazer de pilotar um “37”.
Esta parece ser, de facto, uma aeronave com uma indesmentível aura, com
um apelo único para quem se senta nos lugares lá mais à frente – e não
estou a falar da Executiva, porque para isso basta ter um bom cartão de
crédito ou não usar leggings.
Tenho a sorte de ter um amigo que é piloto comercial. Sorte
que começou no dia em que, ainda ele era instrutor no Aerodromo de
Cascais, me levou a dar umas voltas de pista em Cessna 152 e acordou
definitivamente o meu gosto pela aviação. Ainda íamos a 1000 pés antes
de virarmos para a final do primeiro touch and go e eu já sabia
que iria tirar a licença de monomotores. Fiquei-me pelo PPA, mas ele
continuou. Subiu a pulso e lembro-me muito bem como venceu tudo para
conseguir a licença de piloto comercial: começou precisamente no 737 e
ainda recorda esse avião com um visível entusiasmo.
Chama-se Carlos Carinhas e é atualmente Comandante de
Airbus A330 numa grande companhia asiática. Trabalha no outro lado do
mundo, cruza a outra metade no assento do lado esquerdo, e tripula uma
das aeronaves mais sofisticadas que existem. Mas não esquece o avião
onde iniciou a sua carreira: “Digo-o sem qualquer dúvida – o Boeing 737
é, até hoje, o melhor avião que pilotei em termos de handling, das sensações que nos transmite constantemente”.
Carlos Carinhas fala com a convicção de mais de 10 000 horas
de voo em 737. Iniciou-se em 1991 na Air Atlantis e passou pela Ryanair
e Sabena. Pelo meio, uma experiência que adivinho de voo e de vida,
como co-piloto em 737-200 na paquistanesa Shaheen Air… “Uma das
características mais fabulosas deste avião é a de que voamos com ele
para qualquer lugar, para qualquer aeroporto”, diz o Cmdt. Carinhas,
lembrando as muitas variantes especiais que operam nos lugares mais
inóspitos do globo. “São autênticos tanques voadores, com sistemas muito
testados e que a todo o momento parecem aguentar tudo e mais alguma
coisa…” – o piloto português, que é também um conhecedor de carros
desportivos, não resiste à comparação quando lhe pergunto as diferenças
entre um 737 e um “fly by wire” dos tempos modernos: “É como colocar
lado a lado um daqueles Lotus Elan dos anos 70, em que sentimos tudo,
onde não há eletrônica entre o condutor e o carro, e uma Renault
Espace…” A resposta aos inputs “é extraordinariamente precisa”, o
que explica que tantos pilotos gostem de o tripular, mesmo numa era em
que o piloto automático domina a maior parte das fases de voo. “É como
se estivéssemos ligados diretamente a todas as superfícies
aerodinâmicas do avião”, comenta.
Não queremos, nem ele, nem eu, entrar aqui na velha história
do “Boeing vs. Airbus”, até porque o 737 é um caso à parte… E Carlos
Carinhas tem também milhares de horas de voo em A320 e A330: “São aviões
fantásticos e extraordinariamente eficazes, mas concebidos para um tipo
de operação distinta daquela que serviu de base ao 737, em que o feeling transmitido ao piloto era fundamental”.
O comandante sublinha a importância dos avanços
tecnológicos, mas o piloto não esquece as origens: “O 737 é um avião
único e que deixa saudades a quem o tripulou”.
Não tenho as memórias riquíssimas do Carlos em 737, muito
menos no tal assento do lado esquerdo, mas lembro-me que o meu batismo
de voo foi precisamente num 200, numa viagem entre Lisboa e Londres com a
British Airways. Na altura, as portas dos cockpits ainda não eram
blindadas pelo medo do terrorismo, pelo que era relativamente fácil
pedir para fazer a aterragem no jump seat. Fui autorizado a
entrar e sentei-me o mais quietinho que consegui. E, mesmo passado tanto
tempo, estou capaz de jurar que o piloto ia tão radiante como eu
naquela aproximação à pista 27 esquerda de Heathrow.
Luís Pimenta acompanha o setor automóvel há mais de 25 anos. Editou e dirigiu vários órgãos de comunicação social especializados e generalistas e dedica-se hoje à consultoria e produção de conteúdos e de plataformas de comunicação online.
fonte/foto/motor24.pt
Comentários