ENTRE O CÉU E O INFERNO


O vexame é grande, mas já foi pior. O museu da unidade guarda a forca onde os voluntários eram obrigados a botar a cabeça e anunciar a desistência. Agora, tempos mais amenos, basta subir ao pedestal, expor o rosto na pequena abertura que dá para o campo de instrução e tocar um sino. Menos um. Não há quem desça de lá de cabeça erguida. Ainda assim, todos querem correr o risco. Parece o treinamento de "Tropa de elite", só que sem o Capitão Nascimento. O sonho de todos é fazer parte da Brigada de Infantaria Paraquedista, a mais famosa tropa especial das Forças Armadas, e marchar com os lendários coturnos marrons, projeto de vida que não perde o encanto para jovens das periferias do Rio de Janeiro.


Somente naquele dia, foram 13 badaladas. As desistências, agravadas pelo calor severo, chegariam na primeira etapa (testes físicos) a 30% do total de voluntários do curso básico para oficiais e sargentos. Entre os que ficam, alguns recorrem ao direito a um atendimento médico durante a etapa para deixar o campo de instruções sem ter de subir ao pedestal. Um deles passa mancando por um oficial, que ironiza:

— Isso parece pé-pretismo.

É uma alusão pejorativa ao soldado comum, que usa botas pretas e não tem o status do paraquedista.

— Para ser paraquedista, o voluntário não pode ter medo do solo ou pena do corpo — emenda o oficial.

Quem superar as provações, incluindo a terrível ginástica com toros, peça cilíndrica de ferro puro, erguida dezenas de vezes nos exercícios, chegará aos quatro saltos exigidos para receber o brevê e ao privilégio de usar as botas marrons e ostentar no peito o distintivo das asas de prata.


Mas a turma que se forma agora pode ser uma das últimas a festejar a formatura na Vila Militar do Rio. O projeto Braço Forte, lançado pelo Exército com as diretrizes para a reorganização da força, prevê a transferência da brigada para o Planalto Central, junto com os aviões de transporte da Força Aérea.

Formada por 15 quartéis com um total de cinco mil homens, a brigada dos soldados voadores da Vila Militar, em Deodoro, Zona Oeste, é movida por adrenalina. Logo no primeiro batalhão, uma placa expõe a política do lugar: "Tropa para homens de coragem e determinação." A tensão faz parte da rotina, a ponto de existir um plano de pressão psicológica para a tropa. Afinal, em casos de conflitos, os paraquedistas são a primeira força a ser empregada, razão pela qual seus integrantes devem estar prontos para o lançamento na frente de combate em no máximo 48 horas.


De três a quatro vezes ao ano, a brigada testa sua capacidade de mobilização. Sem aviso prévio, os comandantes acionam o Plano de Chamada, que consiste em ativar uma teia de ligações telefônicas para achar todos os soldados, onde estiverem.


Desde 1944, quando o então capitão Roberto de Pessoa, primeiro paraquedista militar brasileiro, concluiu o curso nos Estados Unidos (no ano seguinte, ele ajudaria a fundar a brigada no Rio), a unidade acumulou poucas e discretas experiências de combate real. Uma delas foi a campanha do Araguaia, confronto entre patrícios no regime militar dos anos 70. A outra, igualmente secreta, foi o lançamento de unidades na região do Rio Traíra, na fronteira da Amazônia brasileira com a selva colombiana, em retaliação ao ataque-surpresa dos guerrilheiros das Farc a um posto militar, em 1991.

Em tese, a decisão de transferir a brigada para o centro do país é uma estratégia de defesa. Além de ficar perto de Brasília, encurtaria a distância de áreas prioritárias, como a Amazônia. Outra razão é o crescente aumento do tráfego aéreo civil no Rio de Janeiro, que atrapalha as operações com as aeronaves de lançamento de tropas do Campo dos Afonsos.


Todavia, há outra motivação, mais reservada, para a saída da cidade: a preocupação do Exército com a cobiça do narcotráfico carioca no recrutamento, para as suas fileiras, do valente e bem treinado soldado pequedê.


Longe do Rio, o Exército estaria livre do risco. Mas, enquanto a mudança não acontece, a brigada reforça, a cada ano, os cuidados para impedir a contaminação. Já nos processos de seleção, o serviço de inteligência da unidade infiltra agentes entre os candidatos para checar se algum deles está envolvido, direta ou indiretamente, com o tráfico de drogas.


Até mesmo o endereço declarado pelo candidato é investigado, incluindo visitas ao local de residência. Este cuidado pode determinar o corte imediato do interessado, caso se verifique que ele mora em comunidades acossadas pela violência.


O futuro destino da brigada ainda não foi definido, mas estão cotadas as cidades de Anápolis (GO), Palmas (TO) e o Triângulo Mineiro. No Rio, ficaria apenas uma brigada leve, com menos soldados e equipamentos. Mas não há prazo definido para a transferência. Paraquedistas veteranos concordam com a mudança, mas temem que os futuros soldados, recrutados em cidades do centro do país, mudem o perfil da corporação: — Apesar dos perigos que o Rio oferece, os recrutas daqui são espertos e versáteis. Se viram bem em qualquer situação, ao contrário dos garotos de lá — diz um oficial.

A Brigada oferece dois cursos básicos, um para oficiais e sargentos e outro para recrutas. Desde que foi fundada, em 1945, já receberam o brevê 77.740 paraquedistas.


A peneira começa sempre no ano anterior, quando seis mil voluntários, de 18 e 19 anos, se alistam na brigada. Até o fim do processo, cinco mil vão ficar pelo caminho, reprovados pelo exame médico-dentário (jovens com menos de 1,60 metro ou problemas de visão são automaticamente descartados), entrevistas sócio-psicológicas, pesquisa social (avalia a origem do candidato) e o primeiro exame físico, onde só passa quem conseguir subir numa corda de três metros, correr 2,2 mil metros em 12 minutos e fazer inúmeros saltos da torre, flexões e barras.

Em março, mês da incorporação, os mil selecionados passam a ser recrutas, mas terão de marchar os quatro meses seguintes, até o primeiro salto, de coturnos pretos.

A maior parte dos inscritos mora em bairros próximos, nas zonas Norte e Oeste, e em municípios da Baixada Fluminense. Poucos chegaram ao ensino médio, perfil que faz do paraquedista um soldado privilegiado: sem boa instrução, o pequedê ganha R$ 800 mensais (o vencimento de um cabo chega a R$ 2 mil) e tem mais chance do que qualquer outro, após o serviço militar, de conseguir emprego na vida civil, principalmente na área de segurança privada — uma história já registrada no documentário "PQD", de Guilherme Coelho.

A sargento Marília Gomes de Carvalho, de 28 anos, queria tanto ser paraquedista que, quando se candidatou (na época, já estava no Exército), recorreu a um treinador pessoal para ajudá-la a superar as provas físicas. Desde 2007 na brigada, Marília, moradora de Campo Grande, já acumula 14 saltos.
Ela garante que não tem medo do que faz, porque confia nas instruções que recebe e no equipamento. Mas nem todos da família pensam o mesmo.
— Nunca conto para minha mãe quando vamos voar. Só depois — diz ela.
Nas primeiras semanas, o recruta recebe a instrução militar tradicional, na qual aprende a marchar e fazer ordem unida, junto com a preparação física para o curso básico de paraquedismo.
Após outro teste físico, ele ingressa na área de estágio, um amplo e rústico centro de instruções onde se qualificará para o primeiro salto. São, seguramente, as duas mais difíceis semanas de preparativos. Nessa fase, pelo menos 50 soldados não resistem aos rigores dos exercícios e tocam o sino da desistência.
— Já vai tarde — zomba um dos instrutores.

Apesar de toda a pressão, temperada pelos gritos e apitadas dos instrutores, os recrutas aprendem ali que a brigada é a mais democrática das unidades militares, porque, quando a tropa pula, todos os paraquedistas (oficiais e praças) são iguais no ar, e um depende do outro para uma descida segura.
— Já vi um general receber ordens de um sargento, que era o mestre-salto daquele avião mdash; conta um veterano paraquedista.
Como a pista de pouso, vizinha à brigada, e as aeronaves pertencem à Aeronáutica, o tal campo de instrução é o diferencial da brigada na Vila Militar. O lugar é uma espécie de fitness rudimentar, com pesos de cimento, barras castigadas pela ferrugem e outras peças rústicas, como os toros de ferro — substitutos dos dormentes de trem usados no passado.
Mas ninguém se preocupa com as aparências. O que importa é a carga física e a capacidade de superação do recruta.

Ambulâncias com equipes atentas acompanham toda a jornada. Quando o calor é muito forte, o risco de intermação (estado mórbido produzido pelo calor) pode suspender a instrução.
Foi dali, garantem seus comandantes, que saíram no fim dos anos 70 os primeiros quadros do famigerado Batalhão de Operações Especiais (Bope) da PM. Outro filho da unidade é o antigo Batalhão de Forças Especiais do Exército, hoje transformado também em brigada.

Além das torres de saltos simulados, são atrações do campo as réplicas camufladas de três aviões usados no lançamento de paraquedistas (Bandeirantes, Hércules e Amazonas). Embora reproduzam as fuselagens originais, os protótipos, toscos, nem de longe compõem uma base aérea cenográfica. Servem apenas para reproduzir, na "aeronave", todas as etapas que precedem o pulo.
Se resistir às duas semanas de estágio no campo, o recruta está apto para o momento mais importante dos quatro meses de instrução: o salto semiautomático, a 330 metros de altitude, na própria pista dos Afonsos.

Os militares brasileiros operam basicamente com dois tipos de salto. O mais difícil é o salto livre, feito a grandes alturas (até 11 mil metros), no qual o próprio militar aciona o paraquedas retangular, podendo direcionálo e aterrar em "áreas restritas". Já o salto mais simples é chamado de semiautomático porque o paraquedas é aberto sozinho, quatro segundos após o pulo, por uma fita conectada à aeronave.

Certa ocasião, nos anos 1990, essa fita não arrebentou, e um paraquedista, preso do lado de fora do avião, acabou arrancando com o corpo o leme de profundidade do aparelho. Era um Bandeirantes C-95 da FAB, que lançava paraquedistas na Restinga de Marambaia e virou imediatamente de cabeça para baixo, caindo instantes depois sobre uma casa no Recreio.

Quatro militares morreram, inclusive o responsável indireto pelo acidente, mas outros sete paraquedistas a bordo conseguiram saltar e sobreviver. Um deles contou que teria oferecido um paraquedas ao mecânico, que preferiu ficar a bordo.

Hoje, em saltos semiautomáticos, o mestre-salto, militar responsável pela checagem do equipamento e pelo lançamento da tropa, incorporou uma faca a seu equipamento essencial.

— Se um paraquedista ficar preso e a situação colocar em risco a aeronave e seus tripulantes, não tenho dúvida: corto a corda e mando ele embora — diz um dos mais experientes da brigada.
Outro risco, instantes após o salto, é de entrelaçamento, situação que impede a abertura completa dos paraquedas. Como o salto semiautomático é curto, para evitar que o militar seja abatido no ar em situações de combate, restaria pouco tempo para o acionamento manual do paraquedas reserva.
Além dos quatro saltos obrigatórios para o brevê, os paraquedistas terão ainda, no último pulo da série, de simular o assalto a uma força inimiga, seguida de uma marcha de combate que pode chegar a até 15 quilômetros, carregando todo o equipamento e armamento, que pesam cerca de 60 quilos.

Uma vez formados, os militares têm direito a ficar até seis anos em quartéis da brigada antes de ir para a reserva. Nesse período, precisam dar, no mínimo, quatro saltos por ano para não perder os conhecimentos adquiridos.

No mês passado, 480 paraquedistas aguardavam, num galpão chamado "rodoviária", o momento de embarcar nos dois Hércules C -130 que faziam as operações naquele dia. Como chovia fino, parte do grupo, frustrada, foi mandada de volta à caserna, porque os oficiais temiam o desgaste dos paraquedas, que a cada secagem perdem a capacidade de reter o vento em seu tecido.Agora, os que ficam não escondem a ansiedade que antecede a decolagem. O avião levanta voo e faz uma longa curva pelo flanco esquerdo da pista. Do alto, as portas abertas exibem os poucos edifícios, as casas e muitos barracos da Zona Oeste. O barulho dos motores, que invade a cabine, é ensurdecedor.

O paraquedista precursor (o primeiro a pular) se agacha e observa a manobra com a cabeça para fora do Hércules. Na gíria da brigada, ele "cheira o vento". Ao verificar que o avião está na rota, comunica ao piloto, por intermédio do mecânico. O mestre-salto, em seguida, dá uma ordem antes de contar o número de paraquedistas:
— Preparar, levantar, enganchar. Verificação de equipamento.
Em seguida, grita:
— À porta!
Os olhos do precursor, primeiro da fila, que se agarra à porta, se concentram nas lâmpadas comandadas pelo piloto. Em segundos, a vermelha se apaga, substituída pela verde. O precursor, então, berra:
— Já!
E salta, seguido pelos demais companheiros.

fonte/ChicoOtávio/OGlobo

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