O PRIMEIRO VOO NA AMÉRICA LATINA ACONTECEU EM OSASCO
Façanha esquecida, o inventor franco-brasileiro Dimitri Sensaud de Lavaud projetou, construiu e voou em 1910 o aeroplano DSL “São Paulo”
Por André Vargas em 27 de Novembro de 2015 às 17:31
A historiografia aeronáutica costuma creditar ao mexicano Alberto
Braniff o primeiro voo na América Latina, em 8 de janeiro de 1910, sobre
a planície La Hacienda de Balbuena, perto da Cidade do México. A bordo
de um aparelho Voisin adquirido na França, Braniff percorreu cerca 1,5
km a uma velocidade de 56 km/h e uma altura estimada de 25 m. Para os
padrões da época, um feito memorável, digno de ser bem noticiado pelos
jornais do mundo todo. Porém, um personagem quase ignorado merece o
devido crédito. Um dia antes de Braniff, em 7 de janeiro, em Osasco,
então um bairro da cidade de São Paulo, o engenheiro francês – que
depois se naturalizaria brasileiro – Dimitri Sensaud de Lavaud conduziu,
de fato, o primeiro voo na América Latina. Façanha menos conhecida, mas
também registrada pelos jornais da época. Realizado quatro anos após
Santos Dumont sobrevoar o campo de Bagatelle, em Paris, seu voo acabou
caindo no esquecimento por infortúnios do destino e pela falta de
memória histórica no Brasil.
Este episódio sensacional, com toques de arrojo, engenho e,
posteriormente, tragédia pessoal, foi resgatado por pesquisadores
dedicados no documentário “O piloto invisível”, produzido e dirigido por
Tamer de Oliveira. Em 2010, ano do centenário do feito, foi publicado
“1910 – O primeiro voo do Brasil”, de Salvador Nogueira e Suzana
Alexandria. Mesmo assim, ainda falta reconhecimento ao pioneiro
franco-brasileiro. Basta dizer que sua história está registrada no Museu
de Osasco, instalado no antigo Chalé Brícola, onde sua família viveu,
mas pouca gente parece se importar. A réplica de seu aeroplano instalada
no museu acabou furtada. O aparelho, o DSL (suas iniciais) “São Paulo”,
sobrevive em uma réplica instalada no Museu da TAM, em São Carlos,
interior de São Paulo.
Pouso desajeitado do DSL resultou em danos
105 metros
O voo foi sensacional, mas menos importante que a capacidade técnica e
a inventividade de seu autor. Foram apenas 105 metros – menos que um
campo de futebol – percorridos em 6 segundos e 18 décimos a uma altura
entre três e quatro metros sobre onde hoje corre a Avenida dos
Autonomistas. Santos Dumont voou 220 metros. O pouso do DSL foi
desajeitado, resultando em danos. Como não possuía amortecedores, o trem
de pouso acabou cedendo, provavelmente por culpa de algumas alterações
de última hora. “Dimitri construiu em um ano um avião em São Paulo,
enquanto Blériot demorou seis meses para fazer o mesmo na França”, diz o
diretor Tamer de Oliveira. O que ele fez antes e depois também foi
extraordinário. Com 1,2 mil invenções patenteadas, suas ideias ainda
fazem parte do cotidiano moderno.
Desde a virada do século, quando tinha pouco mais de 18 anos, o jovem
Dimitri estudava a arte de voar, recebendo os periódicos do Aeroclube
da França enviados por parentes. Nascido em Valladolid, Espanha, em
1882, era filho do empreendedor barão francês Evaristhe Sensaud de
Lavaud (no Brasil, o comendador Lavaud) e da russa Alexandrina
Bognadoff. Após um período na Turquia, a família mudou-se para o Brasil,
onde o pai instalou uma olaria em Osasco, em 1885. Dimitri ficou na
Europa até 15 anos, estudando em um internato onde aprendeu francês e
latim (em casa falava russo com a mãe).
Conhecedor precoce de maquinários, no Brasil trabalhou ao lado do pai
e de dezenas de operários, geralmente imigrantes italianos. Mesmo sem
falar português nos primeiros tempos, compreendia bem a língua. Em 1903,
casou com a descendente de franceses Bertha Rachoud. Em 1916, adquiriu a
cidadania brasileira, porém, em busca de oportunidades, foi para o
Canadá e trabalhou nos Estados Unidos, mudando em definitivo para a
França em 1920.
Um inventor e tantoAlgumas das principais patentes de Dimitri de Lavaud
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Mais inventor que aviador
A diferença entre De Lavaud e os pioneiros de sua época está
justamente aí. Enquanto alguns, como Braniff e Roland Garros, buscavam
fama e aventura, ele investia em soluções que também lhe trouxessem
fortuna. Seu espírito era mais próximo do em preendedorismo de Blériot e
dos irmãos Wright. Enquanto Braniff adquiriu um Voisin na França, De
Lavaud estudou os projetos de Blériot e Farman para criar seu próprio
aeroplano. Algo extraordinário para as condições do Brasil de então.
Projetado por ele e usinado no país, seu motor de 45 hp com seis
cilindros em estrela foi um produto genuinamente brasileiro. “Com
certeza ele era muito mais um inventor do que um aviador. Mesmo na
questão aeronáutica, desconfio que o que mais atraía era o problema do
voo e não o desejo de voar”, afirma Salvador Nogueira, jornalista
científico e um dos autores de “O primeiro voo do Brasil”.
O DSL era um aeroplano bem diferente dos que seriam construídos anos depois, daí a dificuldade em voá-lo. No lugar de ailerons,
a asa se movia por inteiro ao redor de um eixo, enquanto o leme de
profundidade era fixo. Um desafio. “Os sistemas de comando eram falhos,
mas mesmo assim ele conseguiu. O monoplano de Blériot que ele testou
[tempos depois] tinha sistemas de comando diferentes”, conta Pierre
Camps, sobrinho-neto do pioneiro e responsável pela construção das
réplicas do DSL. “Como a barra do trem batia na asa, ele deve ter
mandado cortá-la, o que causou a quebra na hora do pouso”, estima.
Reconhecido então como o primeiro a voar na América Latina, Dimitri
Sensaud de Lavaud decidiu encarar os céus novamente, mesmo diante da
reprovação de sua esposa. Com o acidente que matou o piloto italiano
Julio Piccolo durante o reide aéreo promovido pelo recém-criado
Aeroclube de São Paulo, em 24 de dezembro de 1910, De Lavaud comprou seu
Blériot para ajudar a viúva. O aeronauta e inventor levou o avião para
Osasco, onde fez algumas modificações. Seu voo, em 19 de fevereiro de
1911, teve venda de ingressos e tudo. A bordo do modelo reformado,
dotado de novo motor e rebatizado Blériot de Lavaud No 2, decolou do
Parque Antarctica, onde hoje está localizada Arena Palestra Itália. Uma
pane no motor fez com que o aparelho caísse sobre um bambuzal no final
da pista. Mesmo sem sair ferido, foi o suficiente para Bertha, que o
obrigou a parar. Uma tentativa anterior já havia fracassado. Dali em
diante, o primeiro homem a voar na América Latina cuidaria, com grande
sucesso, só dos negócios e de suas invenções.
Diante da preocupação de sua esposa com a vida de aeronauta, De
Lavaud desistiu de voar. É provável que o mundo tenha ganhado com isso.
Dono de mais 1.200 patentes registradas na Europa e nos Estados Unidos, a
evolução das ideias desse francês fazem parte da vida cotidiana. Já o
esquecimento que se abateu sobre seu voo tem explicações plausíveis para
Salvador Nogueira. De Lavaud abandonou a aviação no Brasil sem deixar
“herdeiros intelectuais” que seguissem adiante. Outro fator seria a
figura de Santos Dumont, uma referência insuperável. “É importante
lembrar que Santos Dumont é um produto francês, mais que brasileiro. Se
estivesse no Brasil, jamais poderia ter realizado suas façanhas”,
acredita.
Réplica do DSL construída pelo sobrinho-neto Pierre Camps
Percalços históricos
Pena que o destino não lhe seria tão bondoso no final, com a ruína e a
desconfiança sobre sua atitude diante dos nazistas durante a ocupação
da França na Segunda Guerra. A ocupação nazista da França, entre 1940 e
1944, foi um período complicado para os franceses em geral e para
Dimitri Sensaud de Lavaud em particular. Houve quem escolhesse resistir,
enquanto outros colaboraram com os invasores, porém, para a maioria não
foram apresentadas opções. Essa parece ter sido a ruína pessoal do
inventor franco-brasileiro.
Preso por uma temporada em 1940 pelos nazistas, que desejavam seu
mecanismo automático para hélices de passo variável, voltou à prisão, em
Lyon, diante da desconfiança de que sabotou os planos. Seu diferencial
para veículos 8x8 também foi roubado pelos alemães, assim como os
estudos para turbinas de fluxo axial e motores-foguete.
Como De Lavaud tinha dupla cidadania desde 1916, o governo brasileiro
tentou soltá-lo por meio de esforços do embaixador Souza Dantas. Após a
libertação da França pelos Aliados, aos 63 anos, ele voltou ao cárcere
sob a suspeita de ter colaborado com os inimigos. Inocentado em 1946,
ganhou a liberdade já com a saúde debilitada. Empobrecido e desgostoso,
morreu em 25 de abril de 1947, aos 64 anos. Um final triste para um
inventor milionário que 21 anos antes havia se tornado Cavaleiro da
Legião de Honra da França.
Ficha técnicaDSL São PauloMotor: 45 hp, com seis cilindros em estrela Hélice: 2,1 metros, de jequitiba Velocidade: 54 km/h Envergadura: 10 metros Comprimento: 10,2 metros Superfície alar: 18 m2 Superfície do leme horizontal: 4 m2 Estrutura: madeira (pinho e peroba) recoberta por cretone envernizado com fixadores e eixos de aço e trem de pouso triciclo (com rodas reforçadas de |
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