NOS BASTIDORES DO SEQUESTRO DO VOO 114, O MAIS LONGO REALIZADO NO REGIME MILITAR
A polícia peruana cercando o Caravelle, em voo sequestrado em janeiro de 1960.
Foto:
Reprodução / O Cruzeiro,13/01/1970
José Luís Costa
Eram tempos de "Brasil: Ame-o ou deixe-o!". E opositores,
perseguidos pela ditadura, sequestravam aviões para fugir do país, boa
parte para Cuba — foram 15 casos entre 1969 e 1972. A partir de relatos
de tripulantes, sequestradores e passageiros, ZH, em continuação à
reportagem publicada no domingo passado, revela os bastidores do mais
longo e dramático sequestro do período.
Aos 24 anos, a professora Marília Guimarães era peça importante na
Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR, organização armada de extrema
esquerda que lutava contra o regime militar naquele final dos anos 1960.
Dona de uma escola com 800 alunos no bairro Coelho Neto, no Rio de
Janeiro, ela usava o estabelecimento para reuniões e copiava no
mimeógrafo panfletos para o grupo. A situação se complicou muito quando
militares invadiram a escola exigindo explicações sobre o equipamento,
que dias antes tinha sido escondido na casa de um guerrilheiro, preso em
Niterói, em fevereiro de 1969.
Sozinha, com dois meninos de três e dois anos para criar — o marido
Fausto Machado Freire, também do movimento, estava preso por se envolver
em assaltos —, ela corria o risco de ir para cadeia a qualquer momento.
Marília abandonou tudo, fugiu com as crianças para Minas Gerais, onde
nascera e tinha parentes, e a decisão da VPR foi de tirar os três do
Brasil. Como? Sequestrando um avião no Uruguai, onde tinha aliados e
apoio dos Tupamaros, grupo guerrilheiro local.
Mãe e filhos desembarcaram de ônibus em Porto Alegre, vindos de São
Paulo, no começo de dezembro de 1969. Marília se hospedou no Hotel São
Luiz, depois no Majestic.
— Via o Mario Quintana no café da manhã, mas não me sentia à vontade em falar com ele — recorda.
O destino dela seria decidido em encontros à beira do lago da
Redenção, com André, o nome falso de Cláudio Galeno de Magalhães
Linhares, primeiro marido da presidente Dilma Rousseff, também
integrante do grupo. Galeno era um dos coordenadores no RS da
VAR-Palmares — resultado de uma fusão ocorrida meses antes, da VPR com a
Colina (Comando de Libertação Nacional).
Das reuniões, também participava James Allen da Luz, o Andrada,
guerrilheiro da ala vermelha, a mais radical da VAR-Palmares, que vivia
refugiado no Uruguai e comandaria o sequestro. Era a largada da operação
que em poucos dias desafiaria o regime militar.
Um Fusca na fuga de Porto Alegre
Em uma madrugada naquele dezembro de 1969, Marília, os dois meninos e
Galeno se espremeram com bagagens no banco traseiro de um Fusca,
partindo de Porto Alegre para Montevidéu. Sentado à frente, um casal de
amigos entregou novos documentos. Na viagem, a professora seria Miriam.
Na capital uruguaia, se instalaram em uma pousada.
Foram compradas passagens para o Brasil para Galeno, Marília, as
crianças, James, e outros três guerrilheiros: Athos Magno Costa e Silva,
Isolde Sommer, a Severina, e Luiz Alberto da Silva, o Conga — o único
sem registro nos arquivos policiais e que se juntara ao grupo na última
hora. O voo escolhido era o 114, da Cruzeiro do Sul, com partida às
19h32min de 1º de janeiro de 1970.
Como o plano foi programado para o
meio de um feriadão, a data exata da operação acabou confundindo jornais
da época, que chegaram a noticiar que a decolagem havia ocorrido na
véspera.
Enquanto os guerrilheiros definiam detalhes da ação naquela manhã de
quinta-feira, o piloto de avião Mário Amaral e o colega Hélio Borges
curavam em Ipanema, no Rio, uma ressaca da noitada de Réveillon. Até que
o telefone deles tocou. Um Caravelle da Cruzeiro que voltaria do
Uruguai no começo da noite tinha estragado no aeroporto de Carrasco, e
eles teriam de fazer uma viagem de emergência para cumprir a rota do voo
114.
— Estávamos de folga, fui dormir bêbado, lá pelas 4h (do dia 1º). Mas
o cara da escala me ligou. Aí, reclamei: porra, e o cara do sobreaviso?
— conta Borges.
— Tá doente — respondeu o interlocutor.
Estava abortado o feriadão de Ano-Novo de Amaral, Borges e outros cinco colegas.
— Voltava do enterro da minha sogra quando fui avisado. Fomos só com a
roupa do corpo, sem mala, sem nada — lembra o comissário José Omar da
Silveira Morais.
O Caravelle, prefixo PP-PDZ, decolou do Galeão às 15h com os sete
tripulantes, chegando perto das 18h na capital uruguaia. No saguão do
aeroporto de Carrasco, Marília se virara para segurar bolsas com roupas,
fraldas, mamadeiras e cuidar dos filhos. Inquietos, os meninos corriam
toda vez que uma porta abria em direção ao pátio dos aviões. Prestativo,
um policial se apressou em entreter as crianças.
— Uma ironia, ajudando uma pessoa que sequestraria um avião — recorda Marília.
A ordem é ir para Cuba, mas, antes, é preciso parar em Buenos Aires
Embora não existisse detector de metais no aeroporto uruguaio de
Carrasco, Marília embarcou apreensiva no Caravelle. Baixinha e magrinha —
pesava apenas 42 quilos—, aparentava ser mais obesa. Sob o tubinho,
moda naquela época, usava uma bermuda elástica que escondia seis
revólveres.
Atrapalhada com bolsas, crianças e bagagens no corredor do avião,
Marília aproveitou a confusão para ir ao banheiro, retirar as armas e
entregar uma para cada colega. Considerando os sequestradores, eram 26
passageiros — 12 brasileiros e os demais uruguaios, argentinos, dois
romenos e um norte-americano.
Os sequestradores se espalharam pelos 64 lugares do Caravelle, quase
vazio. Marília, os filhos e Galeno ficaram no meio. James Allen da Luz, o
líder, se acomodou na primeira fila. Isolde Sommer e outro sequestrador
foram para o fundo. Quatro minutos depois da decolagem, a aeronave
ainda inclinada, Nerly Baradel, chefe dos comissários, saudava os
passageiros com anúncios de praxe.
— Senhoras e senhores, este é o voo 114 com destino ao Brasil, com escalas em Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro...
Alguém resmungou que o voo original não pararia em Porto Alegre, quando James sacou o revólver e gritou:
— Agora!
Empurrou Nerly e invadiu a cabina, que não ficava trancada. Lá
estavam o comandante Mario Amaral, o copiloto Silvio Eduardo de Carvalho
Fróes e o segundo oficial Hélio Borges.
— Estava meio sonado e apareceu aquele maluco com um revólver na
minha cara, um Smith & Wesson, muito bonito, niquelado, engatilhado.
Via as balas no tambor — diz Borges.
James anunciou o sequestro, exigindo que a aeronave fosse para Cuba. O
comandante tentou argumentar. Advertiu que o Caravelle só tinha
combustível para duas horas e precisaria parar em Porto Alegre para
abastecer.
— Brasil, não — gritou James.
A alternativa era Buenos Aires. O piloto reprogramou os controles e avisou:
— Senhores passageiros, fiquem calmos, o avião está sendo sequestrado.
Ao ouvir o alerta, Sofia Ferber, 70 anos à época, desmaiou, caindo ao
lado do marido José Ferber, 72 anos. O casal de poloneses naturalizado
uruguaio viajava com a filha Sara, 39 anos, para o casamento do outro
filho, em São Paulo. No fundo do avião, os comissários Eliete Dias de
Carvalho e Ogier Passos Soares também já estavam dominados. Passos
ofereceu aos sequestradores cigarros, fósforos, lanche, água, café,
bebidas. Tudo estava ao dispor.
— A tensão era grande, e tentamos agradá-los. Sabe-se lá qual seria a reação. Estavam ali para ganhar ou perder — lembra ele.
Os militantes redigiram um manifesto contra a ditadura. Borges
deveria descer para reabastecer a aeronave em Buenos Aires e entregar o
documento às autoridades locais.
O pedido de pouso em Ezeiza exigia contato com a torre de controle, e
os pilotos relataram o que ocorria no aparelho. Com problemas
cardíacos, José e Sofia Ferber foram os únicos a descer, separando o
casal da filha Sara. O assunto logo chegou à imprensa.
— Avisaram ao mundo inteiro que eu estava no avião com duas crianças. Foi o que salvou as nossas vidas — comenta Marília.
O Caravelle foi abastecido, a contragosto das autoridades argentinas.
Mandaram alinhar caminhões na pista para trancar a passagem, mas não
conseguiram impedir a decolagem.
Isolde, participante do sequestro, chamava atenção pela beleza FOTO: Reprodução
O passageiro secreto
Já era madrugada de sexta-feira, 2 de janeiro de 1970, e o Caravelle
se aproximava da pista do aeroporto Cerro Moreno, em Antofagasta, no
norte chileno, para o segundo reabastecimento.
Apesar de os pilotos desconhecerem a rota — a Cruzeiro do Sul não
voava para o Chile —, a viagem transcorreu sem sobressaltos. Preocupado
com a onda de sequestros de aviões, o copiloto Sílvio Eduardo de
Carvalho Froés já vinha pegando informações com colegas sobre o caminho
para Cuba. E durante o reabastecimento em Buenos Aires, o segundo
oficial Hélio Borges tinha ganho um mapa de navegação nos Andes de um
profissional da Varig.
Em terra chilena, o clima era de serenidade. O governo socialista de
Salvador Allende era simpático às causas dos guerrilheiros brasileiros.
Além de combustível, Borges e o comissário José Omar da Silveira Morais
puderam descer para pegar comida e jornais.
Mas, dentro do avião, uma passageira, Mary Nôvo (já falecida),
explodia de raiva. Ela e o marido, o engenheiro civil Luiz Fernando
Nôvo, voltavam para São Paulo depois de alguns dias de férias na
Argentina e no Uruguai. E Mary não se conformava com a situação.
— Minha mulher colocou o dedo na cara de um deles e deu uma de mamãe.
Disse: "Você é um desgosto para a tua mãe, ela nunca mais vai te ver" —
recorda o engenheiro.
Surpresa maior com os passageiros ainda estava por vir: sentado bem à
frente, Flávio Macedo Soares, 29 anos, dava início a uma "queima de
arquivo". Com um faca de metal, cedida por uma comissária, rasgou um
bolsa de lona, lacrada com uma tarja verde e amarela. A todo instante,
ia ao banheiro e voltava. A movimentação chamou atenção.
— Perguntei ao Galeno: você acha que esse homem está com dor de
barriga? E fomos ao banheiro. O vaso e outros compartimentos estavam
todos entupidos de papéis. Não dava para ler.
Penso que eram relatórios
da Operação Condor. Ele levou o maior susto quando foi descoberto —
lembra Marília Guimarães.
Soares, já falecido, era secretário do Ministério das Relações
Exteriores. Sua missão: transportar a mala diplomática até o Rio de
Janeiro — o meio mais seguro para remessa de documentos oficiais e
secretos que não podiam ser despachados pelo correio.
Quando Brasília descobriu que Macedo estava entre os passageiros, o
pânico se instalou no Itamaraty, mas em sigilo absoluto. Os temores
eram: Soares estava ou não com a mala diplomática? Quem colocaria as
mãos nos documentos sigilos, os sequestradores ou os comunistas cubanos?
Nos céus dos Andes, Soares enfrentava uma turbulência pessoal.
— O James achava que ele estava a serviço da CIA, que estava armado.
Falou ao comandante que iria interrogá-lo e, caso reagisse, seria morto —
diz Borges.
A tripulação se desesperou. O secretário do Itamaraty foi revistado
e, por sorte, só portava o passaporte vermelho. Depois, com um revólver
apontado para o peito, teria sido obrigado a escrever uma carta na qual
admitia ter violado a mala diplomática. Em Havana, os documentos
rasgados, parte deles sujos de fezes e urina, teriam sido entregues a
autoridades locais, que, por sua vez, teriam devolvido os papéis ao
secretário do Itamaraty. Ao final do sequestro, o governo brasileiro
evitou falar sobre o episódio.
27 horas de medo em Lima
Assim que o trem de pouso tocou o aeroporto Jorge Chávez, em Lima, o
Caravelle foi cercado por militares peruanos. A ordem do general Velasco
Alvarado, presidente do Peru, era de negociar à exaustão uma rendição,
"matando" os sequestradores no cansaço.
A ação dos brasileiros era manchete mundial naquele 3 de janeiro de
1970, e jornalistas, políticos e curiosos correram para o aeroporto.
Autorizado a providenciar o reabastecimento do avião, o segundo oficial
Hélio Borges desceu com uma carta para entregar a repórteres que se
apinhavam na pista.
Mas poucos conseguiram ler a mensagem dos sequestradores porque
disputaram o papel aos empurrões e rasgaram o bilhete. Uma das frases
dizia que o grupo pertencia à VAR-Palmares e que os dois meninos não
eram reféns. Marília, a guerrilheira que fugia para Cuba com os dois
filhos — o principal motivo do sequestro do Caravelle—, lembra ter visto
faixas de apoio a ela nas janelas do aeroporto. Mas, aos poucos, foram
sumindo, enquanto se aproximavam carros militares de combate.
— Era uma praça de guerra. Colocaram uma metralhadora quase encostada
na cabina. Queriam bloquear o avião de qualquer jeito. Soube, depois,
da preocupação com aquela mala diplomática do Itamaraty, mas, na hora,
não liguei um fato a outro — recorda Borges.
Logo que desceu, ele foi chamado para falar com autoridades peruanas,
e voltou à aeronave como uma proposta: asilo político para Marília e os
filhos. A contrapartida: liberar os reféns, que seriam transferidos
para uma aeronave militar.
— Não aceitei. Invadiriam o avião com meus companheiros lá dentro — recorda Marília.
Além das dificuldades diplomáticas, a viagem até Cuba estava ameaçada
por um grave problema técnico: uma pane elétrica impedia o acionamento
do motor direito e o sistema de refrigeração. As baterias torraram, e o
aeroporto não dispunha de equipamento específico para acionar aquele
tipo de turbina — Caravelle era um modelo em desuso e já não pousava
mais em Lima.
A companhia Avianca trouxe baterias da Colômbia. Eram velhas e não
funcionaram. As horas avançavam, e os militantes, cada vez mais
impacientes, ameaçavam matar reféns.
— Pedi baterias novas, pelo amor de Deus. Todo mundo puto da cara
dentro do avião, nervoso, falando coisas horríveis. Depois de quase um
dia de conversa, concordaram em comprar — lembra Borges.
A companhia LAN levou outro equipamento do Chile. Enquanto isso,
repórteres e fotógrafos faziam plantão no aeroporto, e alguns
sequestradores se exibiam na cabina do Caravelle. Com um cartaz de Che
Guevara nas mãos, Athos Magno Costa e Silva afirmava que iriam treinar
com guerrilheiros cubanos e celebrar os 10 anos da ascensão de Fidel
Castro. Isolde Sommer, a outra mulher do grupo, foi destaque na capa de
jornais.
— Ela era uma jovem morena, linda, com as pernas maravilhosas. Vestia
uma minissaia estampada, com um palmo de comprimento — lembra o
comissário José Omar da Silveira Morais, hoje com 72 anos e morador de
Barbacena (MG). Após 27 horas em Lima, o avião seguiu para o Panamá.
FOTO: Arquivo pessoal
No Panamá, plano de invasão assusta comissário
Nada poderia ser pior do que as tenebrosas 27 horas em Lima, mas a
parada seguinte do voo, reservava momentos de tensão no Panamá, a última
escala antes de Cuba.
Nem os tripulantes nem os sequestradores previram que o ambiente
seria tão hostil. Sob forte domínio de Washington, o país estava
recheado de militares americanos que controlavam a região do Canal do
Panamá, com treinamento de guerrilha e tortura na selva.
A chegada, na manhã de 3 de janeiro de 1970, até que foi tranquila. O
Caravelle parou longe do saguão, e os únicos que se aproximaram foram
dois funcionários da Shell, em um Jipe, para providenciar o
abastecimento.
Como nos outros países, o segundo oficial Hélio Borges desceu com um
cartão de crédito da Cruzeiro do Sul para comprar o combustível. Foi
quando avistou um homem de terno e gravata, caminhando na direção do
veículo. Era um representante da embaixada do Brasil, exigindo que todos
desembarcassem.
— Falei que já tinham tentado isso no Peru. Mas voltei ao avião, e a
resposta dos sequestradores foi: "Não tem papo, manda ele à merda".
Borges seguiu no Jipe para o hangar da Shell e foi abordado por outro
homem falando português, acompanhado de militares e seis soldados
panamenhos com fuzis a tiracolo. Era um coronel do Exército:
— Preciso da sua ajuda. Tenho ordens de parar este avião aqui. Como vai ser?
— Ele queria me dar uma pistola 45 para que eu atirasse no primeiro
sequestrador que visse dentro do avião. Claro que disse não. Aí ele
falou: "Então, vamos mandar comida envenenada ou colocar gás na
tubulação de ar". Vai matar muita gente, eu disse — lembra Borges.
Outro oficial brasileiro, indignado, gritou:
— É por causa de um bunda mole como você, que estão sequestrando avião.
Enfurecido, Borges se virou de costas em direção ao galpão de combustíveis. O coronel o agarrou pelo braço e advertiu:
— Faça o que achar melhor, mas antes me diz o teu nome. Fique sabendo
que, ao voltar ao Brasil, você vai ver o que é bom pra tosse.
O comissário José Omar da Silveira Morais desceu para buscar
refeições e viu marines americanos atrás de árvores, com uma
metralhadora com luneta e mira telescópica apontada para a cabine do
Caravelle. Um militar teria tentado cooptá-lo, oferecendo uma arma.
— Eu deveria entrar atirando e eles, depois. Como não sabiam quem
eram os sequestradores, seria um banho de sangue. Eu seria o primeiro a
morrer. É claro que não aceitei — diz Silveira.
Suspeito de ter colaborado com os sequestradores, Silveira foi
pressionado no Brasil. Acabou perdendo o emprego dois anos depois. Hoje,
luta por indenização. Sempre negou relação com os militantes.
Além de combustível, a aeronave precisava de um lubrificante para
turbinas. Funcionários reviraram armários da Shell, folhearam catálogos
em busca de um similar, e nada. Para completar, o aeroporto de Tocumen
não dispunha de fonte de energia para acionar os motores do Caravelle.
Após cinco horas, as turbinas foram acionadas com baterias velhas.
Em Cuba, os papéis se invertem
viagem entre a Cidade do Panamá e Havana durou duas horas e 15
minutos. O tempo todo com luz vermelha piscando no painel da cabine do
Caravelle. Quase sem lubrificante, uma das turbinas ameaçava ter uma
pane a qualquer instante. A recepção no aeroporto José Martí também
estava a cargo de militares. Mas, desta vez, aliados dos sequestradores.
Um grupo de oficiais entrou na aeronave perguntando quem era a mulher
com os dois filhos. Carlos Lamarca, um dos chefes do grupo guerrilheiro
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), tinha enviado carta para El
Comandante Fidel Castro, pedindo uma atenção especial a Marília
Guimarães.
— Cheguei que era um trapo em Havana, quase delirando. Passei a maior
parte do tempo (dois dias) sem comer e sem beber com medo de
envenenamento. Só molhava os lábios com o que tinha nas mamadeiras das
crianças. O sequestro terminaria quando acabasse o leite e a água deles —
garante Marília.
— Os sequestradores davam as refeições, aleatoriamente, para pessoas
da tripulação e esperavam bastante tempo para comer — lembra o copiloto
Sílvio Eduardo de Carvalho Fróes.
Ele, os colegas e os passageiros foram levados pelos militares
cubanos em um micro-ônibus para uma sala, também isolada, com sanduíches
e refrigerantes.
— Fizeram muitas perguntas, querendo saber qual a tendência política da gente — conta a chefe dos comissários, Nerly Baradel.
O comissário Ogier Passos Soares afirma que, além do interrogatório,
ainda foram submetidos à sessão de fotos e coleta de impressões
digitais.
— Fotos de frente e de lado, como bandido — lamenta ele.
A alegação era de que a tripulação estava ali clandestinamente, pois
não tinha autorização legal para pousar em Cuba. Os sequestradores foram
acomodados no Hotel Capri, e os reféns, no Havana Riviera, distantes
poucas quadras. Por algum tipo de precaução, foram todos proibidos de
sair.
Apesar da liberdade para tomar banho e descansar, a alta carga de estresse impedia os reféns de adormecer.
— Fiquei 60 horas acordado. E, depois que cheguei em casa, também
custei a dormir. Em uma situação dessas, você perde a noção do sono, do
frio, da fome — conta o copiloto Fróes.
O sequestro tinha acabado, mas a confusão envolvendo o Caravelle iria
longe. Além dos problemas mecânicos a serem resolvidos, a aeronave não
poderia regressar ao Brasil sem o pagamento de taxas aeroportuárias
cubanas — há relatos de que seriam de US$ 20 mil a US$ 50 mil.
Como os militares tinham cortado relações diplomáticas com Cuba em
1964 (reatadas só em 1986), o Brasil precisou pedir ajuda à embaixada da
Suíça para desatar os nós.
Em 7 de janeiro de 1970, o Caravelle aterrissou no Galeão, no Rio de
Janeiro, depois de uma escala em Porto Rico para dar explicações ao FBI
(a Polícia Federal americana), em Manaus e em Brasília.
Em solo brasileiro, todos foram interrogados pela Aeronáutica e
proibidos de contar a verdade sobre o sequestro mais dramático da
aviação brasileira.
fonte/foto/ZERO HORA
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