7 DE FEVEREIRO DE 1967 - DIA DE CAOS NO LITORAL NORTE DO RIO GRANDE DO SUL
Foto:
Martins / Agencia RBS
Um
desencontro naquela manhã da terça-feira de Carnaval representou, a um
só tempo, salvação e desespero para Silvia Gomes Saraiva. Ao entrar no
condomínio de veraneio para pegar a filha, Adriana, de três anos, ela
soube que o marido, Gilberto, acabara de sair com a menina em direção à
praia. Quando tomava o rumo de volta à beira-mar de Tramandaí, a dona de
casa deparou com pessoas correndo, transtornadas, no sentido contrário:
– Caiu um avião! Caiu um avião!
Silvia
disparou para a faixa de areia, oito quadras à frente, temendo o pior.
Chegou sem fôlego, tentando localizar os dois em meio à multidão
convulsa. Gritaria, adultos tirando as crianças da água e recolhendo
seus pertences, curiosos se amontoando ao redor do Piper Cherokee de
prefixo PT-CLO destruído. Os detalhes do cenário de caos instalado após o
acidente que deixou pelo menos 10 mortos e sete feridos, ocorrido às
10h30min de
7 de fevereiro de 1967, ainda são vívidos na memória da aposentada de 74 anos.
– Já faz 50 anos? – surpreendeu-
se
Silvia ao atender ao telefonema da reportagem e ser informada sobre o
motivo do contato. – Sabe o que é um choque, quando você não sabe o que
pensar? Você perde a razão. Fica cega, surda, não sabe o que fazer. Vai
perdendo as forças – recordou.
Naquele dia fatídico, Silvia logo
descobriria que Gilberto e Adriana haviam escapado – em vez de irem
direto à orla, eles passaram primeiro em um mercado. Mas a tragédia
chegou muito perto da dona de casa: a aeronave bateu no local onde ela
estava minutos antes de sair para buscar Adriana. Dois conhecidos seus
morreram.
– Foi horrível. O veraneio terminou. Fomos embora – completou.
Silvia vivenciou a tragédia de perto Foto: Bruno Alencastro / Agencia RBS
Episódio
indelével da história tramandaiense, a queda ocorreu em uma manhã
parcialmente nublada, de praia cheia e mar limpo. A paisagem era bem
outra: não havia ainda tantas construções pontuando a orla, e grandes
dunas se elevavam diante do mar. O Piper, pertencente a um industrial de
São Paulo que estava a bordo com outros dois passageiros, além do
piloto, seguia do sul para o norte, em direção a Imbé. Brincando na
água, Claudio Bittencourth, então com 11 anos, ergueu a cabeça e
acompanhou a trajetória da aeronave cruzando o céu. Impressionou-se com a
baixa altitude.
– Esse avião ainda vai cair – previu.
Pouco
depois de o PT-CLO manobrar para voltar ao sul, ficou evidente que
havia algo errado: avançava torto, com a asa esquerda pendente. Na
sacada de seu apartamento no Edifício Jardim Tramandaí, o professor
Roberto Monte da Rocha se apavorou: teve certeza de que o aparelho se
chocaria contra o prédio, o que não chegou a acontecer. Segundo seu
relato em reportagem publicada na edição de Zero Hora de 10 de fevereiro
daquele ano, ele então desceu até a rua, às pressas, para descobrir o
que estava acontecendo. Aproximando-se perigosamente dos banhistas, o
Piper quase tocava a água, enquanto o piloto se esforçava para tentar
estabilizá-lo. O avião, contou Rocha, conseguiu poupar uma área que
concentrava cerca de 5 ou 6 mil pessoas – tivesse caído ali, poderia ter
provocado uma matança com saldo de dezenas ou até centenas de mortos. A
aeronave continuou perdendo altura e, voando muito baixo, fez as
primeiras vítimas: a asa esquerda decapitou Maria Lúcia Albino, e, em
seguida, Guilhermina Goettsch Schorn e Raquel Goettsch da Silva também
foram fatalmente atingidas.
Depois de colidir contra o solo e
capotar mais de uma vez, o Piper Cherokee parou na porção de areia em
frente ao Edifício Paulo Hoffmeister, entre a Avenida Engenheiro Ubatuba
de Faria e a Rua 12 de Abril. Uma massa de veranistas foi atraída como
que por um ímã ao avião caído. Claudio, o menino que palpitara sobre o
funesto desfecho, saiu correndo com o pai para procurar a irmã e um tio,
que poderiam ter se ferido. Paulo Roberto Fleck Selle, 12 anos, deixou o
mar com sua prancha de isopor, atendendo aos apelos da mãe, que o
chamava – "Beto! Beto!" – para junto dela.
– Vai explodir! Vai explodir! – desesperavam-se os presentes, muitos jogando água e areia sobre a fuselagem.
Chamas tomaram conta da aeronave
Entre
as lembranças mais fortes de Selle, agora com 62 anos, estão o estrondo
das capotagens e o ruído provocado, provavelmente, pelo contato da
estrutura quente com a água fria do Atlântico.
– Sabe o barulho de uma frigideira com óleo? – explica o engenheiro.
Sentados
no banco traseiro, os passageiros José Dario Martins e Jorge Gusmão
Duarte sobreviveram à queda, mas não às chamas que tomaram o interior da
cabine – com o vazamento de combustível, as labaredas se alastraram
para o mar. Ergueram-se nuvens de fumaça negra. Os comandos do painel
perfuraram o tórax do piloto, Francisco Pereira Filho, muito machucado
também no rosto. Proprietário do Piper, Rubens Rodrigues da Cunha
conseguiu se arrastar para fora dos destroços, mas não resistiu. Todo o
horror estava à vista do público.
Policiais isolaram a área,
afastando os curiosos. Na ausência de ambulâncias, os feridos foram
acomodados na carroceria de picapes, mesma solução encontrada para a
remoção dos cadáveres. A cena traumatizou o garoto Claudio.
– Os mortos foram empilhados uns sobre os outros – relembra o corretor de imóveis, hoje com 61 anos.
Claudio Bittencourth tinha 11 anos na época do acidente Foto: Bruno Alencastro / Agencia RBS
Um
C-47 da Força Aérea Brasileira (FAB) transportou feridos do Litoral
para Porto Alegre. Três esquifes partiram, também com a FAB, para São
Paulo. Walter Peracchi Barcellos, então governador do Rio Grande do Sul,
compareceu ao funeral de uma das vítimas.
Um episódio com detalhes nebulosos
Transcorridas
cinco décadas, registros do episódio se perderam e detalhes permanecem
nebulosos. As memórias das testemunhas são discordantes em vários
aspectos. É difícil precisar o número total de mortos e feridos, dadas
as discrepâncias de grafia dos nomes em diferentes listas. Existem
dúvidas inclusive a respeito da rota do voo – há quem diga que o PT-CLO
partiu do território paulista, enquanto outros garantem que saiu de um
campo de pouso em Tramandaí.
Pelos dias que se seguiram naquele
verão, uma polêmica ocupou a imprensa – "Sobrevivente ferido acusa:
piloto passou a noite na farra", noticiou ZH. Depoimentos davam conta de
que o condutor do Piper fora visto fantasiado, ingerindo bebida
alcóolica, em um baile de Carnaval da Sociedade Amigos de Tramandaí
(SAT), horas antes de decolar. Otávio Casagrande, que perdeu uma filha e
teve a outra gravemente ferida, lamentou em entrevista ao jornal:
–
Somente total irresponsabilidade do piloto e do proprietário do avião
causaram um drama de tais proporções. Eu estava na praia, vi tudo, desde
as piruetas iniciais até o terrível fim de ferragens retorcidas, gritos
de dor e cadáveres espalhados pela areia da praia onde tudo antes era
alegria.
À época, a 5ª Zona Aérea estava encarregada de investigar
as causas do acidente. ZH contatou diversos órgãos em busca de
informações sobre o desfecho do caso, sem sucesso. A Delegacia da
Polícia Civil de Tramandaí e a Academia de Polícia Civil (museu,
biblioteca e arquivo) não localizaram qualquer documento. O Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, em consultas a mais de um setor, não
encontrou referências a um possível processo judicial – uma pesquisa
mais completa, incluindo o Arquivo Judicial, não pôde ser concluída até o
fechamento desta edição.
Em um comentário recente postado em um
blog, sob um texto recordando o acidente, um suposto sobrinho do piloto
refuta a versão sobre a presença do tio na festa. A reportagem não
conseguiu localizá-lo.
Recolhidos, os pedaços da aeronave ficaram
por um tempo no pátio de um prédio da Polícia Civil na cidade. Imagens
do avião viraram suvenires, na forma de monóculos ou decorando as
residências de moradores. Claudio Bittencourth, durante anos,
atormentou-se com as recordações daquele feriadão. Morava em São
Leopoldo, em uma rota de aviões para o Aeroporto Salgado Filho, na
Capital.
Assustava-se sempre que ouvia os potentes motores se
aproximando. Na ocasião de sua primeira viagem aérea, aos 24 anos,
resistiu a embarcar na aeronave que o levaria até o Mato Grosso. Acabou
por se acostumar, empreendendo muitas outras jornadas pelos ares ao
longo da vida, no Brasil e no Exterior.
— Depois que você se senta
lá dentro e trancam aquela porta, seja o que Deus quiser — comenta
Claudio, em sua casa em Imbé, onde vive atualmente.
fonte/foto/ZeroHora
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